Artista: Míriam Pires | Curadoria: Morella Jurado

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"As prisões, os hospitais e as escolas apresentam semelhanças porque servem à intenção primordial da civilização: a coação."

Michel Foucault

 

Segunda Pele

Miriam Pires nos mostra nos últimos anos uma produção emocional relacionada às marcas do corpo; aos papéis sociais por meio da transfiguração; e à exageração simbólica da tela e do vestido como recipientes vazios contendo almas. Uma obra capaz de refletir preconceitos, medos, complexos e tumores emocionais que mantemos latentes à espera de irromper.

Com a obra "Segunda Pele", Miriam cumpre o objetivo de ultrapassar os limites da rememoração de um dos medos mais antigos e profundos do ser humano: o confinamento, a perda de liberdade, o claustro ou a prisão.

A artista utiliza um dos conceitos mais importantes do pai da psicanálise: a noção do sinistro.

Para Freud, o sinistro se configura quando o familiar se torna estranho ou quando o estranho se torna familiar. O que causa horror não é tanto a novidade em si, mas sim a transformação de algo que considerávamos conhecido em algo estranho, e vice-versa. Esse movimento de um para o outro é o que dá origem à angústia, isto é, quando complexos infantis reprimidos são reanimados por uma impressão exterior, ou quando convicções primitivas superadas parecem encontrar uma nova afirmação.

No caso de “Segunda Pele”, somos observadores e ao mesmo tempo protagonistas do que acontece. A instalação, cujo objeto de uso são simples trajes feitos com tecidos de cores claras que penduram em círculo, nos produz num primeiro momento uma cena familiar, cotidiana: roupas colocadas ao ar livre para secar, ou simplesmente para permanecer ali até serem usadas.

Porém, ao passarmos mais tempo dentro do círculo de tecidos, o sinistro se manifesta. Percebemos que eles parecem corpos informes, presos em um espaço completamente fechado. Corpos desvinculados do eu, almas penadas que nos lembram da possibilidade real de ficarmos presos e nos tornarmos prisioneiros.

Aqui é quando é necessário fazer um chamado à calma, à respiração profunda. Algo que nos convide a mergulhar na poesia que produz o sinistro.

É um fato que, inicialmente, a obra produz angústia, porém o exercício cognitivo de “Segunda Pele” vai além, mostrando-nos a evolução do castigo como contenção social.

Até o século XIX, os tormentos eram eventos públicos, espetáculos sangrentos que serviam como exemplo coletivo e de catarse.

Michael Foucault resume brilhantemente em seu livro "Vigiar e Punir": "A retratação pública na França foi abolida pela primeira vez em 1791 e depois novamente em 1830 após uma breve reinstauração; a picota foi abolida em 1789 e na Inglaterra em 1837. Os trabalhos públicos, que Áustria, Suíça e alguns dos Estados Unidos, como a Pensilvânia, faziam praticar na rua ou no caminho real - forçados com uma argola de ferro ao pescoço, vestidos de roupas multicoloridas e arrastando uma bala de canhão no pé, trocando com a multidão desafios, insultos, zombarias, golpes, sinais de rancor ou cumplicidade -, foram abolidos em quase todos os lugares no final do século XVIII ou na primeira metade do XIX. A exposição foi mantida na França em 1831, apesar de violentas críticas - 'cena repugnante', dizia Real - e finalmente abolida em abril de 1848."

Ou seja, o sofrimento físico e a dor corporal já não são os elementos constitutivos da punição. As instalações prisionais surgem como lugares de detenção e, portanto, o significado da punição muda. Agora, o valioso e, portanto, o que é suprimido, é a liberdade.

No entanto, a supressão da liberdade acarreta várias tarefas para construir o que Foucault chamou de Ortopedia Social. Não é suficiente prender o réu, é necessário reeducá-lo para fazê-lo se encaixar novamente no rebanho.

Uma das características da Ortopedia Social é a uniformidade. Desaparecer com o indivíduo para perdê-lo na massa infratora.

Miriam Pires sublinha o castigo psicológico. Enfatiza a transformação do castigo físico em dor psicologica. Agora, a crueldade direta contra o corpo por meio do sublico é  substituído pela agonia emocional.

Os trajes claros e vaporosos, flutuando em círculo, evocam a perda da individualidade, do eu como formação e direito humano. Os uniformes são anônimos, assim como os prisioneiros que cumpriram sua pena no MUBAN, Museu das Bandeiras, uma antiga prisão na cidade de Goiás. É neste espaço que ocorre a instalação "Segunda Pele", o lugar do claustro transformado em museu.

Em “Segunda Pele”, Miriam Pires nos oferece uma nova oportunidade de sair da nossa prisão emocional.

 

"O conhecimento é o único espaço de liberdade do ser."
Michael Foucault

 

Já falamos sobre a uniformidade como instrumento para desaparecer o indivíduo, sobre a transformação da punição corporal em castigo psiquico e sobre o sinistro como elemento fascinante.

Entretanto,”Segunda Pele” também é segunda chance e segunda visão, uma re-visão. O grafismo que inunda os uniformes e os transforma em papiros, palimpsestos, cadernos, diários, meio de comunicação com o exterior e consigo mesmo, é a segunda pele dos condenados.

Os depoimentos dos presos, escritos à mão em cada uniforme, nos devolvem ao ser, ao humano cotidiano enclausurado nesses mensagens jogados ao mar dentro de uma garrafa, que talvez nunca chegaram a lugar nenhum, ou que nunca tiveram outro destinatário que o próprio remetente.

Na arte epistolar de cada preso, comprovamos o ato de criar, simbolizar e saber. Comprovamos que não há Ortopedia Social capaz de moldar a poesia. A carta é um documento que comprova a existência da esperança. Todo exercício epistolar é, em si mesmo, uma proposição para o futuro.

Florescemos em um abismo", nos lembra o poeta venezuelano Rafael Cadenas. E assim é, a poesia é como um oráculo, revelando verdades em forma de imagens.

Esse aforismo encapsula o núcleo da obra "Segunda Pele". Ele nos ensina a florescer na adversidade e na escuridão, como a flor de lótus que nasce no pântano e é semente e flor ao mesmo tempo. Assim, como esses uniformes de cartas e mensagens, que, animados pelo ar circulante de uma sala fechada, roçam os corpos dos espectadores como em uma dança forjada na alegria, na vida cuja criação se forja nas dificuldades e se torna uma identidade profunda e tenaz.

“Segunda Pele” é uma oda à resiliência, à esperança sem reservas, ao inevitável. Reinvindica o instinto de sobrevivência acima de qualquer circunstância.

“Segunda Pele” é uma viagem desde a angústia que produz o encontro com o sinistro, até a constatação da criatividade como tábua de salvação.

”Segunda Pele” é um canto inquestionável do que nos torna humanos: o poder de simbolizar a realidade.

Morella Jurado

 

"Las cárceles, los hospitales y las escuelas presentan similitudes porque sirven para la intención primera de la civilización: la coacción"

Michel Foucault

Segunda Piel  

Miriam Pires nos ha mostrado desde hace algunos años una producción emocional emparentada con las huellas del cuerpo; los roles sociales por medio de la transfiguración; y la exageración simbólica de la tela y el vestido como vasijas vacías contenedoras de almas. Una obra capaz de reflejar preconceptos,  temores, complejos y tumores emocionales que mantenemos en latencia esperando hacer erupción.

Con la obra Segunda Piel, Miriam cumple el cometido de sobrepasar los límites de la rememoración de uno de los miedos más antiguos y profundos del ser humano: el encierro, la pérdida de libertad, el claustro o la cárcel.

La artista echa mano de uno de los conceptos más importantes del padre del psicoanálisis: la noción de lo siniestro.

Para Freud lo siniestro se configura cuando lo familiar se torna extraño o lo extraño se vuelve familiar. No es tanto la novedad lo que causa horror, sino la transformación de algo que considerábamos conocido en otra cosa extraña, y viceversa. Ese paso de uno a otro sería lo que da lugar a la angustia, es decir, cuando complejos infantiles reprimidos son reanimados por una impresión exterior, o cuando convicciones primitivas superadas parecen hallar una nueva confirmación.

En el caso de Segunda Piel, somos observadores y al mismo tiempo protagonistas de lo que ocurre. La instalación, cuyo objeto de uso son simples trajes hechos con telas de colores claros que cuelgan en círculo, nos produce en un primer momento una escena familiar, cotidiana: ropas colocadas al aire para secarse, o simplemente para permanecer allí hasta ser usadas.

Pero al quedarnos un tiempo más dentro del círculo de telas, aflora lo siniestro. Nos damos cuenta de que parecen cuerpos informes, atrapados en un espacio totalmente cerrado. Cuerpos desvinculados del yo, almas en pena que nos recuerdan la posibilidad real de quedar encerrados y convertirnos en presos.

Es aquí cuando se impone un llamado a la calma, a la respiración profunda. Algo que nos invite a sumergirnos en la poesía que produce lo siniestro.

Es un hecho, en un primer momento la obra produce angustia, pero el ejercicio cognitivo de Segunda Piel va más allá, nos muestra la evolución del castigo como contención social.

Hasta el siglo XIX, los tormentos eran eventos públicos, espectáculos sangrientos que servían de ejemplo colectivo y de catarsis.

Michael Focault lo resume brillantemente en su libro Vigilar y Castigar: “La retractación pública en Francia había sido abolida por primera vez en 1791, y después nuevamente en 1830 tras un breve restablecimiento; la picota se suprime en 1789, y en Inglaterra en 1837. Los trabajos públicos, que Austria, Suiza y algunos de los Estados Unidos, como Pensilvania, hacían practicar en plena calle o en el camino real —forzados con la argolla de hierro al cuello, vestidos de ropas multicolores y arrastrando al pie la bala de cañón, cambiando con la multitud retos, injurias, burlas, golpes, señas de rencor o de complicidad—, se suprimen casi en todas partes a fines del siglo XVIII, o en la primera mitad del XIX. La exposición se había mantenido en Francia en 1831, en contra de violentas críticas —´escena repugnante’, decía Real—, y se suprime finalmente en abril de 1848.”

Es decir, el sufrimiento físico y el dolor corporal no son ya los elementos constitutivos de la pena. Aparecen los recintos carcelarios como lugar de permanencia, entonces el significado del castigo cambia. Ahora lo valioso, y por lo tanto lo que se suprime, es la libertad.

Pero la supresión de la libertad lleva consigo varias labores para construir lo que Focault ha llamado Ortopedia Social. No basta con encerrar al reo, es preciso reeducarlo para hacerlo encajar nuevamente en el rebaño.

Una de las características de la Ortopedia Social es la uniformidad. Desaparecer al individuo para perderlo en la masa infractora.

Miriam Pires subraya el castigo psíquico. Enfatiza la transformación del correctivo físico en el dolor del padecimiento psicológico. Ahora el ensañamiento directo contra el cuerpo a través del suplicio es sustituido por la agonía emocional.

Los trajes claros y vaporosos, flotando en círculo, nos evoca la perdida de la individualidad, del yo como conformación y derecho humano. Los uniformes son anónimos, como anónimos son los reos que cumplieron su pena en el MUBAN, Museo das Bandeiras, otrora cárcel de la ciudad de Goias. Es en ese espacio donde se produce la instalación Segunda piel, el sitio del claustro devenido en Museo.

En Segunda Piel, Miriam Pires nos regala una nueva oportunidad para salir de nuestra cárcel emocional.

 

El saber es el único espacio de libertad del ser.
Michael Foucault

 

Ya hemos hablado de la uniformidad como instrumento para desaparecer al individuo, de la transformación del castigo corporal en castigo psíquico, y de lo siniestro como elemento cautivante.  

Pero Segunda Piel también es segunda oportunidad y segunda visión, re-visión. El grafismo que inunda los uniformes y los transforma en papiros, palimpsestos, libretas, cuadernos, diarios, medio de comunicación con el exterior y consigo mismo, es la segunda piel de los condenados.

Los testimonios de los reos, escritos a puño y letra en cada uniforme, nos devuelven al ser, al minúsculo humano cotidiano encerrado en esos mensajes tirados al mar dentro de una botella, que quizás nunca llegaron a ninguna parte, o que jamás tuvieron otro destinatario que el mismo remitente.

En el arte epistolar de cada preso, comprobamos el acto de crear, de simbolizar, de saber. Comprobamos que no hay Ortopedia Social capaz de llegar a moldear la poesía. La carta es un documento que nos comprueba la existencia de la esperanza. Todo ejercicio epistolar es en sí mismo un planteamiento al devenir.

 "Florecemos en un abismo", nos recuerda el poeta venezolano Rafael Cadenas.     Y es así, la poesía es como un oráculo, devela  verdades en forma de imágenes. 

Ese aforismo encierra el núcleo de la obra Segunda Piel. Nos enseña a florecer en la adversidad y en la oscuridad, como la flor de loto que nace en el pantano, y es semilla y flor al mismo tiempo. Como estos uniformes de cartas y mensajes, que animados por el aire circulante de una habitación cerrada, rozan los cuerpos de los espectadores como en un baile fraguado en la alegría, en la vida cuya hechura se forja en las dificultades, y deviene en una profunda y tenaz identidad. 

Segunda Piel es una oda a la resiliencia, a la esperanza sin ambages, a lo inevitable. Reivindica al instinto de supervivencia por encima de cualquier circunstancia.

Segunda Piel es un viaje desde la angustia que produce el encuentro con lo siniestro, hasta la constatación de la creatividad como tabla de salvación.

Segunda Piel es un canto incuestionable de lo que nos hace humanos: el poder de simbolizar la realidad.

Morella Jurado

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